NASSO

Posted on junho 12, 2024

NASSO

A Busca da Paz

A parashá de Nasso parece, à primeira vista, ser uma coleção heterogênea de itens totalmente não relacionados. Primeiro, há o relato das famílias levíticas de Gérson e Merari e de suas tarefas no transporte de partes do Tabernáculo quando os israelitas viajavam. Então, depois de duas breves leis sobre a remoção de pessoas impuras do acampamento e sobre a restituição, chega a estranha provação da Sotah, a mulher suspeita de adultério pelo marido.

Em seguida vem a lei do nazireu, a pessoa que voluntariamente (e geralmente por um período fixo) assumiu restrições especiais de santidade, entre elas a renúncia ao vinho e aos produtos da uva, ao corte de cabelo e à contaminação pelo contato com um cadáver.

Isto é seguido, novamente aparentemente sem conexão, por uma das orações mais antigas do mundo ainda em uso contínuo: as bênçãos sacerdotais. Depois, com inexplicável repetitividade, vem o relato dos presentes trazidos pelos príncipes de cada tribo na dedicação do Tabernáculo, uma série de longos parágrafos repetidos nada menos que doze vezes, já que cada príncipe trouxe uma oferta idêntica.

Por que a Torá gasta tanto tempo descrevendo um evento que poderia ter sido declarado de forma muito mais breve, nomeando os príncipes e depois simplesmente nos dizendo genericamente que cada um trouxe um prato de prata, uma bacia de prata e assim por diante? A questão que ofusca todas as outras, porém, é: qual é a lógica desta série aparentemente desconexa?

A resposta está na última palavra da bênção sacerdotal: shalom, paz. Numa longa análise, o comentarista judeu espanhol do século XV, Rabino Isaac Arama, explica que shalom não significa apenas a ausência de guerra ou conflito. Significa completude, perfeição, o funcionamento harmonioso de um sistema complexo, diversidade integrada, um estado em que tudo está em seu devido lugar e tudo está em harmonia com as leis físicas e éticas que governam o universo.

“A paz é o fio da graça que emana Dele, exaltado seja, unindo todos os seres, supernos[1], intermediários e inferiores. Ela fundamenta e sustenta a realidade e a existência única de cada um.” (Akeidat Yitzhak, cap. 74)

Da mesma forma, Isaac Abarbanel escreve:

“É por isso que D-s é chamado de paz, porque é Ele quem une o mundo e ordena todas as coisas de acordo com seu caráter e postura particulares. Pois quando as coisas estiverem em sua devida ordem, a paz reinará.” (Abarbanel, Comentário a Avot 1:12)

Este é um conceito de paz fortemente dependente da visão de Gênesis 1, em que D-s traz ordem ao tohu va-vohu, caos, criando um mundo no qual cada objeto e forma de vida tem o seu lugar. A paz existe onde cada elemento do sistema é valorizado como uma parte vital do sistema como um todo e onde não há discórdia entre eles. As várias disposições da parashá Nasso visam trazer a paz neste sentido.

O caso mais óbvio é o da Sotah, a mulher suspeita de adultério pelo marido. O que mais impressionou os Sábios no ritual do Sotah foi o fato de que envolvia a destruição do nome de D-s, algo estritamente proibido em outras circunstâncias. O sacerdote oficiante recitava uma maldição incluindo o nome de D-s, escrevia-a num pergaminho e depois dissolvia a escrita em água especialmente preparada. Os Sábios inferiram disso que D-s estava disposto a renunciar à Sua própria honra, permitindo que Seu nome fosse apagado, “a fim de fazer a paz entre marido e mulher”, libertando uma mulher inocente de qualquer suspeita. Embora a provação tenha sido eventualmente abolida pelo Rabino Yochanan ben Zakkai após a destruição do Segundo Templo, a lei serviu como um lembrete de quão importante é a paz doméstica na escala de valores judaica.

A passagem relativa às famílias levíticas de Gérson e Merari sinaliza que eles receberam um papel de honra no transporte dos itens do Tabernáculo durante as viagens do povo pelo deserto. Evidentemente eles ficaram satisfeitos com esta honra, ao contrário da família de Kehat detalhada no final da parashá da semana passada, um dos quais, Korach, eventualmente instigou uma rebelião contra Moshe e Aharon.

Da mesma forma, o longo relato das oferendas dos príncipes das doze tribos é uma forma dramática de indicar que cada uma delas foi considerada suficientemente importante para merecer a sua própria passagem na Torá. As pessoas farão coisas destrutivas se se sentirem menosprezadas e não receberem o devido papel e reconhecimento. Novamente o caso de Korach e seus aliados é a prova disso. Ao dar às famílias levíticas e aos príncipes das tribos a sua quota de honra e atenção, a Torá está a dizer-nos quão importante é preservar a harmonia da nação honrando a todos.

O caso do nazireu é, de certa forma, o mais interessante. Há um conflito interno dentro do Judaísmo entre, por um lado, uma forte ênfase na igual dignidade de todos aos olhos de D-s, e a existência de uma elite religiosa na forma da tribo de Levi em geral e dos Cohanim, os sacerdotes, em particular. Parece que a lei do nazireu foi uma forma de abrir aos não-Cohanim a possibilidade de uma santidade especial próxima, embora não precisamente idêntica, à dos próprios Cohanim. Esta também é uma forma de evitar os ressentimentos prejudiciais que podem ocorrer quando as pessoas se veem excluídas por nascimento de certas formas de estatuto dentro da comunidade.

Se esta análise estiver correta, então um único tema une as leis e a narrativa desta parashá: o tema de fazer esforços especiais para preservar ou restaurar a paz entre as pessoas.

A paz é facilmente danificada e difícil de reparar. Grande parte do restante do livro de Bamidbar é um conjunto de variações sobre o tema da dissensão e conflito interno. O mesmo aconteceu com a história judaica como um todo. Nasso diz-nos que temos de ir mais longe para trazer a paz entre marido e mulher, entre os líderes da comunidade e entre as pessoas comuns que aspiram a um estado de santidade maior do que o habitual.

Não é por acaso, portanto, que as bênçãos sacerdotais incluídas no Naso terminam – tal como a grande maioria das orações judaicas – com uma oração pela paz. Paz, disseram os rabinos, é um dos nomes do próprio D-s, e Maimônides escreve que toda a Torá foi dada “para fazer a paz no mundo”. (Leis de Chanucá 4:14) Nasso é uma série de lições práticas sobre como garantir, na medida do possível, que todos se sintam reconhecidos e respeitados e que as suspeitas sejam neutralizadas e dissolvidas.

Temos que trabalhar pela paz e também rezar por ela.

 

NOTAS
[1] mais alto, muito elevado; superior, supremo, soberano.

Texto original “The Pursuit of Peace” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l

 

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